sábado, 18 de outubro de 2008

Verdade e Falsidade

Há muitos milhares de anos, Verdade partiu para andar pelo mundo e conhecer todos os povos da terra.No caminho, encontrou-se com Falsidade. Cumprimentou-a como se deve:
- Que Deus lhe dê bons dias, conterrânea, para onde vai?
Respondeu Falsidade:
-Resolvi andar pelo mundo para travar conhecimento com todos os povos da terra.
- Bem então empatou comigo - disse Verdade. - Vamos juntas.
Deram-se as mãos em sinal de amizade e prometeram não abandonar uma a outra, no bem e no mal. O que uma possuísse, dividiria com a outra.
Isso decidido, seguiram seu caminho. Mas ao descansarem na primeira pousada, logo pegaram as provisões que Verdade trouxera, comendo e petiscando até fartar. Disse Falsidade para Verdade: "Assim que acabarem seus suprimentos, comeremos do que eu trouxe."
Verdade acreditou em Falsidade. Mas por ter acreditado assim piamente ela levou a pior. Pois quando suas provisões se acabaram e Falsidade pegou as suas, ela não ofereceu nem um bocado, que já não é muito, para Verdade. E a coitada estava muito faminta, tão faminta que seus olhos enxergavam ora tudo vermelho ora tudo verde. Pediu gentilmente à Falsidade:
- Me dê um pedacinho de pão, amiga! Eu reparti tudo o que tinha com você.
- Está bem - concordou Falsidade -, darei de bom grado se você permitir que lhe fure um dos olhos.
A pobre Verdade não teve escolha, pois sua fome era muito grande: deixou que Falsidade lhe furasse um dos olhos.E prosseguiram em sua andança. Quando tornaram a parar para comer, Falsidade só concordou em repartir sua comida se Verdade permitisse que lhe vazasse o outro olho.
Numa outra oportunidade, Falsidade exigiu um braço de Verdade. Esta consentiu nisso também. Numa outra ocasião ela permitiu ainda que lhe cortassem o outro braço, só para não sucumbir de fome. E depois que Falsidade lhe furou os dois olhos, cortou-lhe os dois braços, ela ainda quis abandonar a pobre coitada mutilada, na beira da estrada. O lugar era muito desolado, onde nem sequer pássaro aparecia e muito menos gente. Verdade implorou:
- Não me deixe sucumbir aqui, leve-me ao menos até o portão de alguma cidade onde eu possa mendigar.
Falsidade prometeu e foi conduzindo Verdade toda estropiada, mas não até o limiar da cidade e sim muito, muito longe, até a orla de uma imensa floresta, largando-a debaixo de uma forca. Verdade sentou-se ali e ficou esperando alguém passar por lá, mas não apareceu vivalma.
"Deus meu, Deus meu - pensou ela ali, sozinha e abandonada -, essa cruel Falsidade não me levou a nenhuma cidade, mas me deixou aqui onde ninguém aparece e jamais aparecerá."
Ela se deixou mergulhar na mais profunda tristeza, até que a doçura do sono a envolveu.Pela manhã, quando acordou, pareceu-lhe ouvir murmúrios de vozes acima de sua cabeça, talvez ema cima de uma árvore. Ficou escutando e, quanto mais ela prestava atenção, mais se certificava que as vozes não pertenciam a seres humanos, mas sim a demônios. Dizia um deles:
- Ah, se os homens soubessem o que eu sei, certamente não haveria tanta gente aleijada e mutilada no mundo!
- E o que você sabe? - perguntaram-lhe os outros demônios.
- Inventei o remédio que cura qualquer defeito físico e a cegueira - disse o diabo.
- Conte pra gente, conte - insistiram os outros -, não vamos revelar o segredo pra ninguém.
- Está bem, vou contar para que vocês também fiquem sabendo. O deficiente físico que se rolar no orvalho da grama numa sexta-feira de lua nova terá seus membros novamente recuperados, e o cedo que na mesma noite lavar seu rosto no orvalho, recobrirá sua visão.
Em seguida falou o diabo mais velho:
- Quem entre vocês sabe mais alguma coisa?
Apresentou-se um jovem diabo e declarou:
- Eu também inventei uma coisa, algo que no espaço de uma semana destruirá a cidade do rei e todos os seres, com alma ou sem alma, que habitam nela.
- E o que será isso? - perguntou todos ao mesmo tempo.
- Isso é algo que fiz: rolei uma gigantesca pedra para o lado oriental da cidade onde existem os mananciais, e toda a população da cidade morrerá de sede.
Os diabos nada disseram. Partiram para algum lugar, só Deus sabe para onde. Mas Verdade ouviu a conversa toda e resolver pôr à prova se o que o diabo dissera era verdadeiro.
Por uma coincidência, era sexta-feira e noite de lua nova; Verdade deitou-se na grama molhada de orvalho e rolou várias vezes e... milagre dos milagres, seus dois braços cresceram de novo. Levantou-se em seguida e colheu um monte de grama orvalhada, que esfregou no lugar onde ficava seus olhos. E de repente ela voltou a enxergar; viu no céu a lua nova e as estrelas cintilantes, viu a imensidão da floresta e a coitada reparou também qua a malvada Falsidade não a levara aos confins da cidade, mas a largara na beira da floresta, debaixo de uma forca. Deu graças à sua sorte por não ter sido abandonada em sua desgraça e imediatamente pensou em fazer uma boa ação: ir direto até a cidade e não parar enquanto não falasse com o rei e contasse-lhe tudo o que ouvira na noite anterior.
Andou, andou, cruzando montes e vales, e não parou até chegar à cidade do rei, embora estivesse tão faminta que as pernas mal e mal a suportavam, e o que viram seus olhos? A cidade inteira estava de luto, e prateando estavam todos os moradores, pois a tristeza era grande demais. Foi direto procurar o rei, que se encontrava sentado em seu salão, profundamente abatido. Mas logo a alegria voltou a reinar quando Verdade lhe contou a coisa fantástica que lhe sucedera durante a noite. Disse-lhe que bastava mandar remover a pedra debaixo da terra, que entupira as nascentes, para a água voltar a correr novamente em abundância. O povo todo dirigiu-se até o local indicado e lá estava a grande pedra, colocada na boca das fontes. Assim que a tiraram de lá, a água abençoada saiu borbulhando e jorrando, enchendo rios e riachos; havia água o suficiente para aplacar a sede de todos.
Verdade foi recompensada com tudo do bom e do melhor. Banhava-se em leite e mel, e não quiseram deixá-la ir embora, convidando-a a viver ali mesmo na cidade.
O tempo foi passando. Falsidade ainda percorria o mundo. Mas um dia suas provisões também se acabaram e, enquando ia flanando de um lugar ao outro, acabou chegando a cidade onde morava Verdade. Coincidência ou não, entrou justamente na casa ocupada por Verdade, e pediu-lhe um pedaço de pão.
Verdade logo reconheceu Falsidade, e disse-lhe:
- Dou de boa vontade, se você permitir que lhe fure um dos olhos.
Falsidade não teve alternativa senão consentir.
No dia seguinte ela voltou à casa de Verdade, porque em nenhuma outra parte ela conseguira algum alimento, nem sequer pão seco, mas Verdade concordou em lhe dar o que comer se ela, Falsidade, deixasse vazar o outro olho.
- Pode vazar meu outro olho também - disse Falsidade -, apenas dê-me pão para eu saciar minha fome.
No terceiro dia ela deixou que cortassem o braço esquerdo e no quarto dia, seu braço direito, só para ter seu pão diário. Quando, ai final, ela ficou sem olhos e sem braços, pediu à Verdade que esta a conduzisse até a forca na beira da floresta, onde ela largara Verdade tempos atrás.
- Está bem - concordou Verdade -, irei levá-la. - Dito e feito. Levou-a imediatamente até a forca, fê-la sentar-se deibaixo dela e deixou ai sem dizer uma palavra.
Anoiteceu, e os diabos tornaram a se reunir no mesmo local, para prestarem contas do que cada um fizera nos últimos dias. Antes de começarem, porém, seu realto, assim falou o mais velho dos demônios:
- Esperem um pouco antes de começar a falar, vamos dar uma espiada para ver se não há ninguém nos ouvindo, porque da última vez alguém andou bisbilhiotando, pois se não foi isso, como puderam descobrir a história da pedra, removendo-a de cima dos mananciais?
Fizeram como o diabo velho recomendara e acabaram achando Falsidade sentada debaixo da forca. Foi uma pancadaria só. Caíram todos em cima dela a tapas e murros. Num piscar de olhos ela foi rasgada em mil pedaços e, como se não bastasse, acenderam uma fogueira e a queimaram, jogando suas cinzas no ar.
O vento, que passava ali naquele momento, carregou e espalhou suas cinzas pelo mundo todo, e desde então, onde o homem vive, a Falsidade também existe.

Retirado do livro Os Grandes Contos Populares do Mundo de Flávio Moreira da Costa

País do conto popular: Hungria
Tradução e adaptação de Ildikó Sütö

Um comentário:

Veronique Valeriuns Spenser disse...

A história é muito boa, adorei.
Agora está explicado porque existe tanta falsidade!

xoxo